Uma analogia do filme "Uma Pistola Para
Djeca" de Mazzaropi com a filosofia de Voltaire
sobre sociedade classista.
“O que deve um cão a um cão, um cavalo a um cavalo?
Nada. Nenhum animal depende do seu semelhante.
Tendo, porém, o homem recebido o raio da Divindade
a que se chama razão, qual foi o resultado?
Ser escravo em quase toda a terra.
A dependência é a raiz de todos os males.
Todos os homens seriam necessariamente
iguais, se não tivessem necessidades.
A miséria que avassala a nossa espécie
subordina o homem ao homem -
o verdadeiro mal não é a desigualdade: é a dependência.”
Voltaire.
Só
reflete:
Que
homem em sã consciência se sujeitaria as vontades do outro, e
se privar de sua dignidade, se assim não fosse? Princípios
existem onde há escolhas, fora delas cabe só à resignação e submeter-se a
vontade dos que têm o poder de decisão nas mãos, até pela autopreservação.
Uma
Pistola Para Djeca (1969), do cineasta Mazzaropi mostra sobre sociedade patriarcal,
divisão de classes, opressores e oprimidos e a hipocrisia social e religiosa aos não privilegiados. O poder e a influência
como juízo de valor sobrepõem os valores da igreja e seus ensinamentos. Ou seja,
quem manda é o dinheiro, compra
até o silêncio divino, porque todos são dependentes do opressor e tampouco
importam os valores morais e éticos.
Numa
linguagem enganosamente simplista o enredo fala sobre o
poder das classes dominantes aliado ao pensamento de Voltaire: “A Dependência é
a raiz de todos os males”.
Gumercindo
e sua filha vivem sob o jugo do coronel e sua família arrogante
e insensível apoiados pela igreja visto como um benfeitor,
"homem honrado" e graças a ele, o povo e seus dependentes têm
"comida e moradia", independente se a moral pode ser
questionável aos olhos de Deus, enquanto se sujeitam a todo tipo de privações e se regozijam
com migalhas.
O drama familiar começa num
baile onde a filha de Gumercindo (Mazzaropi) uma das
serviçais é seguida pelo filho inescrupuloso do patrão na adega.
Desse
estupro nasce um filho não reconhecido, motivo de chacota para
todos e ao mesmo tempo torna a pedra no sapato do patrão, que, a
essa altura quer unir sua fortuna com outro importante coronel
e honrado. Este por sua vez, não
vê com bons olhos a união, mas a filha está vislumbrada e o
pároco tenta influenciar a todo o custo o casamento, já que assim continuará com
seus privilégios e favores mesmo à custa do sofrimento alheio.
Quando os boatos começam a
tomar força na vila sobre o neto bastardo, o coronel
tenta se “livrar” do problema com o sequestro e quando o filho do
Coronel sofre um atentado no casamento, a moça violada é acusada pelo
crime (a corda arrebenta sempre pelo lado mais fraco).
Cabe agora ao Juízo, apesar
da influência e poder protegido pela máscara “de bem” que o coronel
e família passam para a sociedade dos privilegiados em restaurar a
justiça. Gumercindo pode ser homem iletrado, mas não ignorante ao que se
passa ao seu redor.
No bar, enquanto Gumercindo
pede uma pinga e desabafa com seus amigos, das quais também compartilham de
amarguras, logo o pároco sai em defesa do opressor:
“Vocês precisam acabar com
essa má vontade com o coronel, é um homem bom, uma
alma boa, ele precisa ser mais compreendido”.
"Alma boa é 'os
coletes da vó'". "O Senhor fala assim porque não para aqui. Não,
quer dizer, o senhor vive lá, mais com o pessoal do dinheiro, e
lá ele não faz 'embruiada' - quer beber uma pinga?”, retruca Gumercindo aos
risos.
Como o injustificável não tem argumentos...
Caberá a eles lutar contra
a tirania, a opressão e a hipocrisia daqueles que se beneficiam e se
omitem sobre os menos afortunados e provar a inocência da moça
para restabelecer a ordem social e moral ao Juízo(como deveria
ser), apesar da vista grossa que a sociedade faz.
"Para que servidores se não tivésseis
necessidade de nenhum serviço?
Ainda que passasse pelo espírito de algum indivíduo de bofes tirânicos e braços
impacientes por submeter o seu vizinho menos forte que ele, a coisa seria
impossível: antes que o opressor tivesse tomado as suas medidas o oprimido
estaria a cem léguas de distância. Todos os homens seriam necessariamente
iguais, se não tivessem necessidades. A miséria que avassala a nossa espécie
subordina o homem ao homem - o verdadeiro mal não é a desigualdade: é a
dependência.
Pouco importa chamar-se tal homem Sua Alteza, tal outro Sua Santidade. Duro,
porém, é um servir o outro.
Sou tão homem como o meu amo, nasci como ele a chorar; como eu ele morrerá nas
mesmas angústias e com as mesmas cerimónias.Temos ambos as mesmas funções
animais. Se os turcos se apoderarem de Roma e eu me tornar cardeal e o meu
senhor cozinheiro, tomá-lo-ei a meu serviço.
Tudo isso é razoável e justo. Mas, enquanto o grão turco não se assenhorear de
Roma, o cozinheiro precisa de cumprir as suas obrigações, ou toda a humanidade
se perverteria. Um homem que não seja cozinheiro de cardeal nem ocupe nenhum
cargo no Estado; um particular que nada tenha de seu mas a quem repugne o ser
em toda a parte recebido com ar de proteção ou desprezo; um homem que veja que
muitos monsignori não têm mais ciência, nem mais espírito, nem mais virtude que
ele, e que se enfade de esperar nas suas antecâmaras, que partido deve tomar? O
da morte".
Trechos de Dicionário Filosófico de Voltaire.
Para o filósofo, o oprimido
de hoje sonha em ser o opressor de
amanhã e manter sobre domínio os de agora.
Porém, enquanto isso não acontece, ele precisa se sujeitar ao
seu senhorio. Sem escolhas, os resignados se curvarão diante
da má sorte e até se regozijar com as parcas condições oferecidas,
do seu benfeitor.
Mas viver sem perspectivas e sem dignidade, a morte é mais viável, pois não há
diferença entre a servidão e ela. Será melhor morrer lutando pelos seus direitos
do que permanecer subjugado, sendo não mais que um morto-vivo.