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sábado, 15 de abril de 2023

Gente Pobre

Primeiramente nunca li antes um livro de Dostoiévski, conhecia-o como um dos maiores escritores de todos os tempos e por ouvir falar de “Crime e Castigo”.

Ano passado ao deparar com um site de livros dele, me interessei em ler sua primeira obra “Gente Pobre” (1846).




Segundo o prefácio do livro, trata-se de uma literatura característica do século XVIII assim como repercutia o “ensaio fisiológico” francês, mas o autor mantém sua originalidade tipicamente russa, com ênfase a clima gogoliano (Nikolái Gógol,  escritor, romancista e dramaturgo russo do século XIX), e além dele também.

Uma das coisas que me chamou a atenção logo de início são as palavras escritas no diminutivo, vim a descobrir que se trata de algo trivial na cultura russa (alminha, coraçãozinho, paizinho, igualzinho, folhinha, papelzinho, anjinho, cantinho, mãezinha, librinhas, diazinho, moedinhas) entre tantas outras.

Dostoiévski conta a história de Makar, um funcionário público solitário, de baixo escalão que mora num pardieiro, pouco letrado e Varvara, uma jovem costureira, órfã e injustiçada, mora com uma senhora em frente a ele, se correspondem através de cartas e relatam dia a dia as penúrias vividas por eles numa São Petersburgo cheia de contrastes e se torna seu protetor, mesmo com todos os mexericos em volta deles, mas ambos estão dispostos a superar as maledicências e se ajudar mutuamente. A grandeza de afeto, respeito e solidariedade superam a falta de bens materiais.

A princípio achei a escrita prolixa, embora não poderei opinar com propriedade, já que pouco conheço sobre a literatura russa, cultura e sistema deste país, mas a cada carta lida de ambos, suscitava a curiosidade em saber mais e mais destes personagens complexos.


Autoria de Jean-François Millet - Woman Sewing by Lamplight, 1870–72 – óleo sobre tela - 100.6 x 81.9 cm – The Frick Collection, New York, USA.
Fonte: https://www.arteeblog.com
 

Apesar do trabalho de costura e apoio recebido, agrados, livros e incentivos morais, ela se sente constrangida, pois, desconfia que ele passe por privações para ajudá-la de modo a livrá-la das más intenções e dependência de sua parenta ardilosa, após a morte de seus pais. Num desses lampejos, Varvara, o repreende pelo seu sacrifício, enquanto se preocupa com o amanhã:

Ah que vai ser mim, qual será a minha sina! É duro  viver nessa incerteza, sem ter um futuro, sem poder sequer prever o que há de acontecer comigo. Tenho até medo de olhar para trás. Há tanta miséria lá que,  só de lembrar, fico com o coração dilacerado. Hei de me queixar para sempre das pessoas malvadas que destruíram minha vida!

Apesar de todas as injustiças, tramoias e falsidade vividas, parcas condições financeiras e apertos, permanece entre eles, a grandeza de sentimentos, compaixão e otimismo para amenizar o sofrimento e sequelas que os marcarão para sempre. Cada carta entre eles cria uma expectativa e troca de livros, uma reflexão.

Num deles,  Makar, discorre sobre suas virtudes e profissionalismo, cumpridor dos seus deveres e da lei, mas como qualquer pessoa suscetível a defeitos e erros. Mas desconfortável com comparações picuinhas e situações vividas e faz duras observações sobre a leitura:

“Para que escrever sobre o outro que, por exemplo, vez por outra ele passa por necessidades, não toma chá? Como se todo mundo tivesse obrigação de tomar chá! Quem foi que eu ofendi a tal ponto? Não, minha filha, para que ofender os outros quando não estão perturbando! Veja Varvara, vou dar um exemplo, veja o que isso significa: você trabalha, trabalha, com todo o zelo e aplicação — ora! — e o próprio chefe o respeita (seja lá como for, mas o respeita), — mas eis que vem alguém e bem debaixo do seu nariz, sem qualquer motivo aparente, sem mais nem menos, lhe arma uma pasquinada”.

Com o tempo, as agruras se intensificam, devido aos boatos por gastar seus recursos com ela e ter caído em desgraça, no entanto, se sente magoado por sua repreensão, pois, se preocupa mais com os mexericos que podem afetá-los do que toda a ajuda que lhe prestastes em sua doença. A partir daqui,  atiçarei a curiosidade para lê-lo e conhecer o final, pois, não sou favorável a “spoilers”.

Muito mais que um livro, um retrato social em defesa da dignidade das pessoas pobres, a mercê da própria sorte para sobreviver encontra nas outras iguais, apoio, e passam despercebidas por uma sociedade egoísta que os faz invisíveis para ela. Não tem como em algumas partes não se identificar com as agruras de Varvara, em dado momento estamos fadados a cruzar com pessoas mesquinhas, cruéis e perniciosas, julgam às outras conforme sua própria régua e benesses!

Para adquirir o livro “Gente Pobre”, acesse o link:  https://www.editora34.com.br/detalhe.asp?id=542

O próximo a ler deste autor será: “Humilhados e Ofendidos”, curiosidade despertada ao associar com a canção de Belchior “Onde Jazz Meu Coração”: “Ei, senhor meu rei do tamborim, do ganzá, cante um cantar, forme um repente pra mim. Aqui, nordeste, um país de esquecidos, humilhados, ofendidos e sem direito ao porvir. Aqui, nordeste, sul-América do sono… No reino do abandono, não há lugar pra onde ir”.

Como um intelectual que ele fora, o artista deve ter lido Dostoiévski, certamente.