A semana havia sido quebrada por um chamado especial do Juiz do Júri. Sentado em seu gabinete, ouvi com atenção o pedido para aceitar uma nomeação dativa para a defesa de um senhor. Beirando os sessenta anos de idade, ele havia largado sua profissão de boiadeiro. Por suas andanças, após ter filhos paraguaios, um romance com uma índia, e tantas outras histórias, acabou vendo a boiada embarcar em um caminhão. Não havia mais trabalho para o velho boiadeiro.
O destino então lhe trouxe para Curitiba, onde após alguns esforços, conseguiu o emprego de carpinteiro em uma construtora. Poucos dias de trabalho e acabou perdendo a mão em uma serra. Aposentado por invalidez restou-lhe o direito de viver em um pequeno barraco de uma das tantas favelas da Capital Paranaense.
O caso a ser julgado era de certa forma simples. Réu confesso, ele contava que depois de muito esforço, conseguiu mobiliar seu barraco, que tinha até televisão. Mas dentre todos os seus bens, gostava mesmo é de seu radinho de pilhas, que trouxe na bagagem de boiadeiro. Ali gostava de ouvir suas notícias, e aprender alguma coisa sobre o mundo novo que tão pouco conhecia.
Cerca de um mês antes dos fatos, viu com tristeza seu barraco ser invadido. De lá, retiraram a metade de seus poucos bens. Na favela, todos apontavam o autor, mas ninguém podia fazer nada contra ele. O autor do furto era elemento de uma gangue, cuja notoriedade foi alcançada pelas suas arruaças, roubos e violência.
Certa feita encheu o peito da coragem de boiadeiro, e foi até o meliante para pedir suas coisas de volta. Além de uns sopapos, não conseguiu mais nada. Agora voltava pra casa sem sua dignidade, e sem seu radinho de pilhas.
Tomado por sua justa revolta, ainda com a coragem de boiadeiro, resolveu ir à polícia e denunciar o furto e a gangue. Na delegacia viu uma jovem menina preencher alguns papéis, pedir-lhe para pregar os dedos sujos de tinta em alguns documentos, nada além disso.
Voltou pra casa estranhando aquilo. O Boiadeiro achava que ao dar a notícia, veria alguns policiais entrarem em uma viatura e irem até a favela para prenderem os bandidos. Pelo que percebeu as coisas não funcionavam por aqui exatamente como deveriam. Descendo do ônibus, rumou a passos pequenos e tristes para o seu barraco. Parece que mais um pouco de sua dignidade havia sido perdida na delegacia.
Quando entrou em seu barraco pela porta arrombada, deparou-se com a mais inusitada das cenas. Todo o resto de seus bens, das roupas ao colchão, havia sido roubado. Explodindo em revolta, foi até os vizinhos. Estes lhe informaram que foi exatamente o mesmo elemento que havia cometido o primeiro furto. A sua revolta tomou proporções insuportáveis. Durante uma semana toda viu o ladrão passar pela frente de sua casa com o sorriso irônico que confessava o furto. Aguardava o dia em que a polícia entrasse na favela e fizesse a justiça, mas ela não veio.
Em uma destas oportunidades, o ladrão cometeu um erro fatal. Passou pela frente do barraco ouvindo o amado radinho de pilhas. Quando o Boiadeiro foi até ele para tentar reaver seu bem foi agredido. Mas esta era a última vez. Tomado de um sentimento de vergonha e tristeza, cegado pela ira, o Boiadeiro frequentou os mesmos bares do meliante. Num destes bares, conseguiu comprar um revólver. O destino dos dois estava selado.
No dia dos fatos, quando a gangue do meliante passava pela frente da casa do Boiadeiro, carregando o mesmo ar sarcástico, ele não titubeou. De arma em punho saiu e descarregou a arma sobre o peito do ladrão.
A polícia se fez presente imediatamente, e procedeu a prisão em flagrante do Boiadeiro, que por questões de honra, confessou prontamente o homicídio. Levado à delegacia sem advogado e nem família, longe de sua índia, ele passou alguns meses preso, até que o juiz do Tribunal do Júri resolveu de ofício conceder-lhe a liberdade provisória.
Após aceitar e me preparar adequadamente para o processo, eu ainda não tinha uma tese sólida o suficiente para convencer os sete jurados. A Legítima Defesa baldaria diante do excesso. De nada valeria sustentar a excludente para ao final, chegar à mesma condenação. Um dia antes do júri, o promotor Celso Ribas (in memorian) , disse que não pediria a absolvição, porém, achava que os debates seriam riquíssimos se circundassem a Inexigibilidade de Conduta Diversa. Achei o tema interessante, mesmo que partindo do oponente, resolvi me preparar para sustentar aquela tese. Fui ao plenário sustentando Legítima Defesa, Homicídio Privilegiado e Inexigibilidade de Conduta Diversa.
A acusação feita sempre de forma magistral pelo saudoso Celso Ribas, pediu tão somente o afastamento das qualificadoras, requerendo aos jurados que condenassem o Boiadeiro nos moldes do Caput do artigo 121 – Homicídio Simples.
Na minha sustentação, passei rapidamente pela Legítima Defesa por questões técnicas. Logo entrei no privilégio e dele fiz as mais ardentes palavras. Eu não tinha dúvida da violenta emoção. No meio da sustentação, percebi que um dos melhores argumentos pelo privilégio, era exatamente o sofrimento moral diante da injusta provocação da vítima. E como argumentos compatíveis, privilégio e inexigibilidade de conduta diversa se avultaram diante dos jurados.
Percebendo a possibilidade de sucesso da tese defensiva, a Acusação decidiu fazer uso da réplica. Antes porém, o colega de plenário Celso Ribas, passou por mim e disparou: Preparou-se bem para a tese que lhe indiquei. Parabéns! Porém, creio que não devo mais trocar ideias com o senhor antes do júri. Ambos sorrimos, terminamos o café e voltamos ao plenário.
Na réplica, Celso Ribas foi exatamente aquilo que sempre se esperou dele. Brilhante. Com os cuidados que lhe eram peculiares, percebeu que precisava levar o julgamento para o lado emocional. A discussão técnica havia se tornado incompreensível para os jurados. E ele o fez com maestria.
Assumi a palavra na tréplica ainda contido, mas ao olhar para o Boiadeiro, depois de acabar a abordagem técnica, percebi que havia algo mais a ser dito naquele plenário. “A Constituição garante que os acusados serão julgados por seus iguais quando submetidos ao Tribunal do Júri. Os senhores jurados se sentem iguais ao acusado? Já trabalharam como boiadeiros?” O coração assumiu o controle das palavras. Então me lembrei dos tempos de músico. Lembrei-me da viola caipira, onde sempre gostei de tocar as modas pantaneiras de Almir Sater. Enquanto falava, sentia o peso do plenário e media o ponteiro do relógio. Havia ainda cerca de 10 minutos para a explicação dos quesitos e o encerramento.
Subitamente, percebi o quanto a música peão se aplicava ao caso. Do tempo restante resolvi fazer a declamação da letra de Almir Sater, cuja transcrição faço a seguir.
Peão
Almir Sater
Diga você me conhece
Eu já fui boiadeiro
Conheço essas trilhas
Quilômetro, milhas
Que vem e que vão
Pelo alto sertão
Que agora se chama
Não mais de sertão
Mas de terra vendida
Civilização
Ventos que arrombam janelas
E arrancam porteiras
Espora de prata riscando as fronteiras
Selei meu cavalo
Matula no fardo
Andando ligeiro
Um abraço apertado
E um suspiro dobrado
Não tem mais sertão
Os caminhos mudam com o tempo
Só o tempo muda um coração
Segue seu destino boiadeiro
Que a boiada foi no caminhão
A fogueira, a noite
Redes no galpão
O paiero, a moda,
O mate, a prosa
A saga, a sina
O “causo” e onça
Tem mais não
Ô peão….
Tempos e vidas cumpridas
Pó, poeira, estrada
Estórias contidas
Nas encruzilhadas
Em noites perdidas
No meio do mundo
Mundão cabeludo
Onde tudo é floresta
E campina silvestre
Mundão “caba” não
Sabe, “prum” bom viajante
Nada é distante
“Prum” bom companheiro
Não conto dinheiro
Existe uma vida
Uma vida vivida
Sentida e sofrida
De vez por inteiro
E esse é o preço “preu” ser brasileiro.
Ao final do Júri, a sentença que reconhecia a primeira Inexibilidade de Conduta Diversa desde 1995 em Curitiba, além de absolver o acusado, sentenciaram este advogado a viver com a música. Músico e advogado em plenário, pois a Justiça, enquanto escrita com letras maiúsculas, é a mais doce das harmonias que um músico pode buscar.
Facebook: https://www.facebook.com/AdvocaciaSamuelRangel
Padre Camargo, 185, Alto da Gloria, Curitiba