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segunda-feira, 30 de maio de 2022

A Sociedade líquida em que vivemos

Coisas reais que apressados ou indiferentes, fingimos não ver.

Imagem de Besno Pile por Pixabay 

Mas não se preocupe meu amigo
Com os horrores que eu lhe digo
Isso é somente uma canção
A vida realmente é diferente
Quer dizer
Ao vivo é muito pior (Belchior)

Era por volta das 15h30 quase um mês atrás, em um mercado da cidade, quando um senhor começou a passar mal.  O açougueiro percebeu que ele ia desmoronar e o agarrou por um braço que logo ia levar os dois ao chão, as pernas do senhor idoso parecia gelatina, tremiam sem parar. Ele aparentava idade avançada, talvez seja por morar numa chácara como me informou depois, “era mineiro e orgulhoso”  pelo árduo trabalho.

E sem controle, eles rodaram em círculo, foi aí que eu apareci para ajudá-los, ele disse que estava com câimbras e eu pedi ao rapaz para abraçá-lo por trás na altura do estômago com abdômen e descê-lo devagar até que ele se apoiou no balcão de carnes.  Enquanto ele o segurava, eu pedi algo para massagear as pernas do idoso, o fiz com pouco de álcool gel, e elas foram passando e a cor do idoso voltando.

Nesse interim, ele contou que as tinha sempre e que usava “óleo de freio de caminhão” e ajudava, mas que agora elas estavam mais frequentes. Eu disse para ele que estava se contaminando perigosamente e parar imediatamente com a indicação seja lá de quem for.

E ele complementou que aguarda há meses por consulta na unidade pública, mas devido “à pandemia havia uma longa fila de espera” e  veio até aquele mercado (pelo lugar que disse que mora, segundo o Google maps, uns 9 km dali e que antes atravessou à rua apressado e caiu, mas uma mulher o ajudou),  por causa dos preços do café, levantou o pacote do carrinho e que aquele era o verdadeiro café mineiro.   

Enquanto eu pedia para uma funcionária anotar o que faltava de sua compra a pedido dele, disse para chamar à mulher que acompanhava tudo para chamar o SAMU, da qual o mercado não quis informar-me quem era depois, e ela respondeu que eu não poderia fazê-lo sem o consentimento do idoso (sic).

Eu nunca soube na vida que havia tal imposição, ao contrário, que omissão de socorro é crime, está no código penal.

Enquanto isso eu ofereci água a ele, e comprei em seguida uma garrafinha da qual ela foi tomando e melhorando mais, até na fala. Acredite se quiser, mas não oferecerem nada a ele, os funcionários (exceto os 2 açougueiros) da qual solicitei ajuda, o restante, clientes e segurança (que deveria ser treinado para essas eventualidades)  ficavam apenas olhando e indiferentes.

Agora vem a parte que me corroeu por dentro. Pedi seu nome e um contato familiar para ligar. Disse que morava sozinho e contava com vizinhos próximos no mesmo quintal, os filhos moravam em outra vila, evitavam contato e que se eu ligasse para vir até ele, diriam que era para pagar o táxi. E como bom mineiro, era orgulhoso e não ia se rebaixar a eles.

Eu insisti, mas  ele foi taxativo, que eles não se importavam,  ele tampouco. Nisso a compra ficou pronta e disseram para eu que tomariam conta de tudo, e eu pedi pelo menos que chamassem um táxi para ele, concordaram.

Eu fui então terminar a minha compra, mas eu fiquei com o sentimento que eu deveria ter feito mais, e ao mesmo tempo, desapontada com esse modelo de sociedade e pessoas. Vivemos numa sociedade líquida (Bauman), onde as relações sociais cada vez mais frágeis, fugazes e moldáveis, de acordo com os nossos interesses até que eles terminam. Acabou a utilidade, termina a bajulação, a gratidão, o reconhecimento, incontáveis adulações e partimos em busca da próxima utilidade. 

Quando criança, eu ouvia meu pai dizer uma frase de uma música sertaneja: “um pai trata dez filhosdez filhos não trata um pai”

Nós, filhos, não entendemos que nossos pais são vítimas de outras vítimas e quando agimos assim como eles, não somos melhores, ao contrário, nós repetimos os mesmos erros que tanto notamos e o ciclo não se encerra.  E quando eles mais necessitam quando velhos, doentes e cansados, do perdão, compaixão e empatia, de assistência, os deixamos para trás. E esquecemos de contar o tempo, talvez, eles terão 10, 15 anos a mais para tê-los aqui na terra, e o tempo passa tão rápido que só sentiremos a falta deles e a perda quando eles já se foram. 

Acho que  Oscar Wilde descreveu de forma crua e nua:  “no início, os filhos amam os pais. Depois de certo tempo, passam a julgá-los. Raramente ou quase nunca os perdoam”.