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sexta-feira, 2 de agosto de 2013
CARTA DE AMOR - Drummond
Encontrada no carro do metrô, e dizia assim:
—Estou pensando seriamente em declarar greve de mim a você, por tempo indeterminado. Não me pergunte os motivos. Você sabe. Ou é melhor que não fique sabendo, porque assim a greve é mais completa, e eu quero justamente ser um grevista mais total do que os outros grevistas que brigam por salário decente e condições decentes de trabalho.
Quero que você fique perturbada e confusa, sem saber o que eu estou fazendo ou deixando de fazer, e a todo instante a se perguntar: "Que greve é esta? Em que consiste? Quando vai acabar? Que coisa mais idiota."É isso mesmo: você achará idiota a minha greve, porque não a entenderá. Então, o menor gesto que eu fizer, a palavra mais sem significação, tudo se transformará para você em enigma, você me sentirá o cara mais misterioso do mundo, por que não dizer: o mais tenebroso.
Se pequenino e encantador cérebro de colibri dará voltas a si mesmo e não perceberá o sentido da minha abstenção oculta - de quê? E eu continuarei firme, inflexível, grevista, sem expor minhas reivindicações.
De jeito nenhum.
Então você se desmanchará em suspiros, se enrodilhará toda a meus pés, pedirá perdão de faltas não cometidas, e que eu não sabia que você fosse capaz de cometer. Confessará também as cometidas, mas eu não darei bola e continuarei a tratar você da maneira ambígua que estou anunciando. Você será um poço de petróleo repleto de amor, eu recusarei sondar esse poço inesgotável, ou finjo que estou sondando mas com vontade de não encontrar o menor indício de petróleo. Esta fase será curta, pois não quero abusar de sua amorosidade ofertada. Passemos à segunda fase.
Você se irritará comigo e, perdendo a paciência, me dirá duas ou três coisas ácidas. Jogará um copo na minha direção. Ou uma xícara, dessas do trivial do café. Eu desviarei o corpo do copo ou da xícara, e se você me jogasse em cima um samovar seria a mesma coisa: não desistiria da greve. Aí você adotava em princípio a idéia de enlouquecer. Só em princípio. Eu é que estou pinel - concluiria você. Conclusão provisória, a ser confirmada pelo psiquiatra, mas o psiquiatra, que é meu amigo, lhe responderia: Ele é assim mesmo, isso passa.
Não vai passar não, talvez minha greve seja eterna, e nunca mais seremos aqueles namorados que conquistaram o Oscar de melhor idílio no Festival de Angra dos Reis. Continuaremos, sim, dois namorados unidos por esse laço invisível da greve, como o empresário está cada vez mais preso ao assalariado, ou este àquele, quando entram em conflito de interesses, mas esta nossa categoria não dá prêmio.
A terceira fase... Haverá terceira fase? Você apelará para nossos amigos comuns, ou para o Ministério da Comunicação Social, que aliás não existe, existe só o Ministério, não a Comunicação? E que é que eles podem fazer para acabar com uma greve tão fechada, tão silenciosa, tão sutil, que nem a reforma da legislação trabalhista, por engenhosa que seja, lhe dará remédio?
Bem, se você faz mesmo questão fechada, se sua vida ficar dependendo da elucidação das causas primárias e outras, da minha greve, então eu deixo no carro do metrô um envelope lacrado com os seguintes dizeres (no verso):
Não adianta abrir, nessa emergência? Nem haverá quem abra o envelope? Quem sabe? Sempre resta um sobrevivente, ou vários. A Bíblia o demonstra. Eu não posso revelar o meu segredo nem diante de uma comissão de inquérito parlamentar. Minha greve é absoluta. Tenha paciência, garota, não faço por menos, nem admito intervenções no meu sindicato. Meu sindicato sou eu.
Tem uma coisa. Não deduza de tudo isto que estou declarando guerra. Guerra é guerra, greve é outra coisa, e a minha então é outríssima. Sem quebra, atenuação ou extinção de amor. Pois você não vê, boba, bobíssima, que isto ainda é amor, é mais amor do que amor, é minha forma de amar você, de um jeito só meu, que nem você mesma é capaz de aprender em sua mineral abismalidade? ‘Dio come te amo! Até.
Carlos Drummond de Andrade
Livro: Boca de Luar -
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