segunda-feira, 6 de setembro de 2021

A Igreja do diabo - Machado de Assis

No mês de falecimento (29 de setembro de 1908) do maior gênio da literatura brasileira, Machado de Assis, em um conto atemporal, "A Igreja do Diabo", simplificado, mas indispensável ao bom leitor e para reflexão. 

Capa de A igreja do Diabo.

O Diabo, cansado de ficar abaixo de Deus, resolveu comunicá-lo que iria fundar sua própria igreja. Pelo livre-arbítrio, Deus não o impediu. Mal chega à terra e o diabo se declara o verdadeiro Senhor e que a partir daí todos os conceitos de virtudes, totalmente abolidos:

“Sim, sou o Diabo”, repetia ele; “não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso. E eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...” 

E assim, entusiasticamente, ele falava, a fim de atrair a atenção para congregar as multidões que aos poucos vieram para si. Após tê-las convencidas, falou qual seria a nova doutrina. 

As virtudes moralmente aceitas seriam substituídas por outras, as que eram legítimas. 

Entre elas, “A soberba, a luxúria e a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença de que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu..."

O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos de Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Lúculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum?

"Pela sua parte, o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo."

Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de propriedades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

"As turbas corriam atrás dele, entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloquência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs. Porém, a demonstração mais afrontosa foi a da venalidade. Segundo ele, “A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos”.

“Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório.”

"Demonstrado assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente."

"E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração."

"Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele."

"A previsão do Diabo verificou-se. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo."

"Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros."

"A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas, socorria os filhos das vítimas."

"Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe: Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana."

Machado, de forma cômica, fala sobre a ambiguidade do ser humano, 
de como a religião, ao mesmo tempo em que vende a salvação, também 
faz vista grossa para as práticas proibitivas.

Dicionário: (Para ler Machado, aconselho o dicionário ao lado, risos). 

* venalidade: qualidade do que pode ser vendido. natureza ou qualidade 
do funcionário público que exige ou aceita vantagens pecuniárias indevidas 
no exercício de seu cargo.

*turbas: multidão.

*pecuniárias - relativas a dinheiro. pagamento de vantagens recebidas ou favorecimento delas.

*Lúculo - político e general da República Romana.

Para ler esse conto na íntegra ou mais obras de Machado de Assis acesse o link do Domínio Público à disposição do leitor.

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